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Kitagawa, que encontrou utilidade para o inútil, ganha o Prêmio Nobel

KYOTO — Quando o telefonema chegou às 17h30 do dia 8 de outubro, Susumu Kitagawa pensou que fosse apenas mais um telemarketing irritante interrompendo seu trabalho no laboratório.

Mas o interlocutor sueco mudaria sua vida para sempre.

Kitagawa foi nomeado co-vencedor do Prêmio Nobel de Química, por seu trabalho inovador em estruturas metal-orgânicas (MOFs), uma descoberta que pode ajudar a combater as mudanças climáticas e revolucionar o armazenamento de energia.

"Fiquei chocado. Pensei que fosse uma daquelas ligações estranhas de solicitação que recebo com frequência", disse Kitagawa, 74 anos. Professor Emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Kyoto (KUIAS), em uma coletiva de imprensa logo depois. "Estou profundamente comovido."

Na manhã seguinte, Kitagawa chegou à universidade no distrito de Sakyo, em Kyoto, sob os aplausos de mais de 100 funcionários que deram as boas-vindas ao novo ganhador do Nobel.

"Eu era apenas um velho comum e agora tudo mudou. Isso não é bom", refletiu Kitagawa.

"É em momentos de silêncio que várias ideias me vêm à mente. Fico pensando no que fazer agora."

Kitagawa disse: "Eu estava tão exausto que desabei na cama ontem à noite, mas acordei me sentindo ótimo esta manhã."

"Tenho tanta coisa para fazer: pesquisa, mas também tarefas administrativas como diretor de universidade, das quais gostaria de me isentar", brincou, provocando risos nos colegas.

DESCOBERTA ACIDENTAL

Os premiados MOFs da Kitagawa são materiais preenchidos com inúmeros poros minúsculos e ordenados. Essas estruturas podem absorver uma ampla variedade de gases, o que os torna úteis em aplicações industriais e ambientais.

Sua descoberta ocorreu por volta de 1990. Na época, Kitagawa estava na Universidade Kindai, tentando determinar a estrutura 3D de compostos químicos feitos de metais e materiais orgânicos.

Ele pegou emprestado um supercomputador da Universidade de Kyoto, mas como ele era compartilhado com muitos outros pesquisadores e exigia o processamento de uma quantidade enorme de dados, o processo demorava muito.

Um dia, ficando impaciente, Kitagawa pediu a um aluno que desenhasse a estrutura do complexo no papel enquanto ele calculava.

"Professor, tem poros aí", disse o aluno.

O desenho revelou um padrão semelhante a um favo de mel.

“Achei incrivelmente interessante”, lembra Kitagawa. “Minha intuição me disse que os poros, e não a estrutura principal, poderiam ser úteis. Mas eu não sabia imediatamente como.”

Kitagawa e sua equipe posteriormente conseguiram sintetizar materiais com esses poros microscópicos. Inicialmente, a estrutura era instável e facilmente colapsava, mas, por meio de experimentos repetidos, eles finalmente criaram uma estrutura estável capaz de armazenar metano.

DA REJEIÇÃO À REVOLUÇÃO

A descoberta foi tão revolucionária que subverteu as ideias aceitas pelo mundo científico da época. Como resultado, a proposta não foi facilmente aceita.

Quando Kitagawa apresentou suas descobertas em uma conferência nos Estados Unidos em 1999, ele foi recebido com uma enxurrada de críticas de pesquisadores internacionais, que lhe disseram: "Isso está errado".

A substância encontrada por Kitagawa era um composto orgânico com matéria orgânica ligada a um metal (uma substância inorgânica). Na época, a crença predominante era de que esses compostos orgânicos eram instáveis ​​demais para uso prático.

Mas Kitagawa não cedeu às críticas e continuou sua pesquisa. Ele estendeu suas aplicações à "separação", na qual um gás específico é extraído de uma mistura, e à "conversão", onde um gás é transformado em outro dentro dos poros.

UMA FILOSOFIA ENRAIZADA NO VAZIO

Leitor ávido desde os tempos de ensino médio, Kitagawa disse que seu interesse pelos inúmeros poros de materiais surgiu dos livros que leu quando era calouro na Universidade de Kyoto.

Nos livros do renomado físico Hideki Yukawa, Kitagawa ficou cativado pelo conceito filosófico de Lao-Zhuang de "muyo-no-yo" (a utilidade do inútil), a ideia de que coisas que parecem não ter propósito são, na verdade, úteis.

Por exemplo, um ditado do lendário filósofo chinês Lao Tsé diz: "Nós amassamos o barro para fazer cerâmica. O interior da cerâmica pode parecer um espaço vazio inútil, mas é o espaço vazio que torna a cerâmica útil."

A química geralmente se concentra na matéria — os elementos preenchidos com átomos e moléculas. Mas Kitagawa se concentrou nos "poros", que são espaços vazios.

“Essa ideia — de que até o nada tem significado — teve um enorme impacto em mim”, explicou ele. “Um poro parece inútil. Mas se você colocar átomos ou moléculas nele, armazená-los ou transformá-los, ele se torna útil. Uma simples mudança de perspectiva pode mudar tudo.”

A ERA DO GÁS QUE SE APROXIMA

Kitagawa imagina um mundo no qual os novos materiais que ele desenvolveu poderiam eliminar conflitos sobre recursos energéticos.

Os MOFs, com seus poros personalizáveis, podem absorver não apenas sólidos e líquidos, mas até mesmo minúsculas moléculas de gás. Um dia, eles poderão capturar dióxido de carbono ou extrair energia do ar.

Em uma coletiva de imprensa em 8 de outubro, Kitagawa disse: "O ar é composto de oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e dióxido de carbono. Com eles, podemos criar proteínas e combustíveis. Os gases estão se tornando cada vez mais promissores."

Ele acredita que os humanos estão entrando na "era dos gases", depois da era dos sólidos, que provocou a revolução industrial com o carvão, e da era dos líquidos, dominada pelo petróleo.

“O ar é ouro invisível”, disse ele. “O carvão e o petróleo criaram disparidades entre países ricos e pobres em recursos. Mas o ar está em toda parte. Mesmo os países pequenos podem aproveitá-lo ao máximo. Se pudermos extrair energia dele, os conflitos por recursos devem desaparecer.”

De acordo com Kitagawa, mais de 40 startups foram lançadas no mundo todo para resolver desafios ambientais e energéticos.

Embora ainda existam obstáculos para aplicações práticas, ele expressou otimismo, dizendo: "A ciência está avançando a uma velocidade tremenda, com coisas como IA (inteligência artificial), então acho que isso pode ser alcançado neste século."

VISÃO, GRATIDÃO, GRATIDÃO

Kitagawa disse que suas lutas passadas foram "incontáveis". Mas ele nunca desanimou, movido pela crença de que "um cientista precisa de uma visão e uma atitude que lhe permitam enfrentar desafios com curiosidade", e continuou sua pesquisa diligentemente.

"O que eu faço é criar novos materiais. Gosto do desafio de experimentar e criar coisas novas há mais de 30 anos", disse ele.

"As coisas muitas vezes não vão bem. Na química, o trabalho em equipe é crucial", acrescentou, expressando sua gratidão aos membros de seu laboratório.

Questionado por um repórter sobre uma mensagem para a próxima geração, Kitagawa citou o famoso microbiologista francês do século XIX, Louis Pasteur: "O acaso favorece a mente preparada".

Kitagawa disse: "Bons professores, bons amigos e bons relacionamentos. Essas coisas não acontecem de um dia para o outro. Elas florescem quando você valoriza todas as suas experiências."

RECEITA PARA UMA BOA QUÍMICA

A equipe de Kitagawa também ficou satisfeita com o anúncio sueco.

“Esperávamos por isso há anos. Mas este ano eu tinha certeza de que aconteceria”, disse umProfessor Associado Kenichi Otake, 37,

Embora Kitagawa seja conhecido por seus padrões rigorosos de pesquisa, ele promove uma cultura de laboratório igualitária, onde alunos de graduação e pós-doutorado debatem em igualdade de condições — uma receita para uma boa química em mais de um sentido.

Os membros da equipe costumam fazer caminhadas juntos nas montanhas de Kyoto, como Kurama e Fushimi, e a cada três meses eles degustam um dos vinhos favoritos de Kitagawa, coletados durante suas viagens ao exterior.

Às vezes, Kitagawa, um cozinheiro apaixonado, faz pão em casa e serve para todos.

O professor Hirotoshi Sakamoto, 46, que trabalha no laboratório desde a graduação, brincou: "Ele deixa o pão alemão bem embalado por dentro e (ao contrário do seu objeto de pesquisa) não tem muitos buracos!"